domingo, dezembro 17, 2006

Enquanto existir ocaso




O ar fresco do final da tarde não deixa margem para dúvidas, estamos em pleno Inverno, apesar do dia ter decorrido soalheiro e com temperaturas agradáveis, o cair do sol trás temperaturas gélidas próprias da serra.
Oiço o zumbido do ar frio passar no capacete os olhos não param de lacrimejar, estou rodeado por vinhas, estendem se numa manta listada em tons de terracota, apenas cortada por uma linha de asfalto guardada por anciões muros de pedra cobertos de líquenes e musgo, a estrada serpenteia o vale, subindo e descendo colinas.
Certa altura, depois de atingir o topo de uma colina sou brindado com uma paisagem de rara beleza, como se de um premio se tratasse, um vale coberto de velhas cerejeiras retorcidas, cujas folhas caídas criaram um inexplicavelmente bonito manto vermelho, ao fundo posso ver o casario disperso de são Julião, as luzes já acesas dão lhe um ar quase presepial, o fumo das lareira acumulado no fundo do vale, cria uma atmosfera de misticismo, tudo reforçado com a iluminação do poente alentejano.
Por fim lá passo a taberna do Sr. Balocho, nome pelo qual é conhecida a pobre criatura, que para alem de se governar com a insaciável secura das gentes da serra, também é o principal conhecedor das historias e vida social do vale, “tasca da cascata” assim se chama, e não deixando o nome margem para duvidas, que naquele, sitio a pipa nunca seca.
Continuo a perder altitude em direcção ao Porto Espada e encontro me outra vês entre infindáveis vinhedos, com a serra fria e suas imponentes paredes de frente para mim, iluminadas com o resto de sol do fim de tarde, como se de uma dadiva se tratasse, a natureza assim escreveu, sendo este o mais bonito sitio do vale, então será o ultimo a conhecer a noite. Esta magnifica visão transporta me para as verticais e destemidas aventuras do verão.
Entro então no vale de São Julião a deslizar silenciosamente a grande velocidade. São Julião é um povoado constituído por três pequenos aglomerados de nome: Montinho Barrocão e Algoinha, as habitações estendem se ao longo da estrada principal, predominam as tabernas e os cafés, vá se lá saber porquê, quem sabe pêlo calor insuportável dos verões ou pêlo frio cortante do Inverno, ou quem sabe mesmo se por única salvação ao profundo isolamento serrano desta humilde gente de trabalho.
A escola primaria ergue se no alto de uma colina rodeada por um verdejante prado,
Está impecavelmente conservada, como se o tempo ali não tivesse passado, meia dúzia de miúdos da freguesia mantêm na aberta, noutros tempos chegou a ter quarenta alunos e nela leccionou uma professora que deixou memoria lá na terra pela impiedade da sua régua.
Alguns quilómetros e umas subidas depois passo então num sítio chamado tarranganheira, outrora ponto de passagem, onde desembocavam os movimentados trilhos do contrabando.
Estou rodeado por oliveiras e inicio a descida para a Rabaça, pequena povoação que cresceu perto do posto fronteiriço com o mesmo nome. É certamente o povoado mais próximo de Espanha. A descida termina numa ponte sobre um vale verdejante, onde, o ruído das águas invernais do rio Gévora é senhor.
Agora é que começa a parte mais divertida, trata-se de subir a encosta sul da serra, são quinhentos metros de desnível e cerca de uma hora de penitência.
Os pés já há muito deixei de os sentir, pode ser que isto me prepare para alguma aventura mais alpina do próximo ano, tenho as pernas a latejar, as costas e o rabo a doer, a respiração ofegante, que estranha forma de auto-flagelação, que estranha forma de me sentir vivo. Mais ou menos a meio da encosta posso ver o recorte perfeito da serra, sobre a faixa laranja do crepúsculo, á direita a penha amarela e os seu líquenes verdes claro, mantêm sempre presente a escalada. A subida parece não acabar, mas as minhas pernas mantêm a cadencia circular de uma forma quase incontrolável, demente mesmo, como se não houvesse amanhã e aquela fosse a minha última tarefa
O céu acaba por se preencher de cintilantes estrelas, trazendo consigo um fugaz mas generoso quarto crescente que impõem uma cor prateada á estrada que se delineia vale a cima.
Fiquei sozinho mergulhado na escuridão e no silêncio, entregue á exígua luz que trago no guiador, empenhado nos pedais, numa espécie de meditação transcendental, sinto um imenso prazer, um misto de dor e paz de espírito.
O afrutado aroma da silagem e a luz dos candeeiros já acesos, fazem me adivinhar a chegada a Soverete, ataco então a ultima subida até á Teixinha, ao atingir o porto uma enorme placa de granito anuncia o limite da freguesia de alegrete.
Já sinto o cheiro do fumo da minha lareira e a confortável melodia do fogo crepitante.
Posso agora entregar-me a um valente prato de massa salteada com azeite caseiro, alhos pisados e coentros, roubados na horta da minha mãe, acompanho com um vinho tinto do meu vizinho Barreto, mas não é um vinho desses da moda, criados por enólogos de sotaque francês, conseguidos em adegas ultra modernas, é um vinho feito como desde os tempos do deus Baco, como este ensinou os homens a fazer, uns anos bom, noutros menos bom, mas com um aroma e sabor como já poucos conhecem.