quinta-feira, julho 21, 2011

Cartas de amor


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi no meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

Álvaro Campos

quinta-feira, julho 14, 2011

A NOITE PASSADA


A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "Então porque não voas?"
e então tu olhaste, depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar-alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo, ias lá no fundo
faltou-me o pé, senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo bailava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos e então dissemos
"Aqui vivemos muitos anos"

A noite passada o paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estava do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti, disse baixinho "Olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então tu olhaste, depois sorriste
disseste "'Ainda bem que voltaste"


Sergio Godinho

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Alentejo


Terra de grandes barrigas
Onde há muita gente gorda,
à sopa, chama-se açorda,
E à açorda, chamam-lhe migas...
às razões, chamam cantigas;
Molhaduras, são gorjetas;
E em vez de encostas, chapadas;
Em vez de açoites, nalgadas;
E as bolotas são boletas...

Terra mole, é atasquero;
Ir embora, é abalare;
Deitar fora, é aventare;
Fita de coiro, é atero;
Vaso com planta, é cravero;
Carpinteiro, é abegão;
E a choupana, é cabanão;
às hortas chamam hortejos;
Os cestos, são cabanejos;
E ao trigo, chama-se pão!

No resto de Portugal(e)
Ninguém diz palavras tais:
As terras baixas, são vais;
Vestir bem, parece mal(e);
à aveia, chamam cevada;
E ao bofetão, orelhada;
Alcofa grande? é gorpelha;
A "balazã" é vermelha;
Broas de mel, é melada!...

Quando um tipo está doente
Logo dizem que está morto;
E a todo o vau, chamam porto;
Chamam gajo, a toda a gente;
Mas ter safões é corrente;
Por acaso, é por adrego;
Ao saco, chamam talego...
E até, nas classes mais finas,
Ser janota, é ser maricas;
Ser beirão, é ser galego!

Os porcos, medem-se às varas;
E o peixe vende-se aos quilos...
E a gente pasma de ouvi-los
usar maneiras tão raras!
Chamam relvas, às searas,
às vezes, não sei porquê?...
E tratam por vomecê
Pessoas a quem venero!...
Não quero, diz-se: Nã quero!
Eu não sei, diz-se: Ê nã sê!



(José de Vasconcellos e Sá, fado corrido)

sexta-feira, março 23, 2007

morre lentamente


"Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca

Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamentequem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamentequem evita uma paixão,quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os "is" em detrimento de um remoinho de emoções,justamente as que resgatam o brilho dos olhos,sorrisos dos bocejos,corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,quem não se permite pelo menos uma vez na vida,fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja,quem não lê,quem não ouve música,quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamentequem destrói o seu amor-próprio,quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente,quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.

Morre lentamente,quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves,recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade."



Pablo Neruda

domingo, dezembro 17, 2006

Enquanto existir ocaso




O ar fresco do final da tarde não deixa margem para dúvidas, estamos em pleno Inverno, apesar do dia ter decorrido soalheiro e com temperaturas agradáveis, o cair do sol trás temperaturas gélidas próprias da serra.
Oiço o zumbido do ar frio passar no capacete os olhos não param de lacrimejar, estou rodeado por vinhas, estendem se numa manta listada em tons de terracota, apenas cortada por uma linha de asfalto guardada por anciões muros de pedra cobertos de líquenes e musgo, a estrada serpenteia o vale, subindo e descendo colinas.
Certa altura, depois de atingir o topo de uma colina sou brindado com uma paisagem de rara beleza, como se de um premio se tratasse, um vale coberto de velhas cerejeiras retorcidas, cujas folhas caídas criaram um inexplicavelmente bonito manto vermelho, ao fundo posso ver o casario disperso de são Julião, as luzes já acesas dão lhe um ar quase presepial, o fumo das lareira acumulado no fundo do vale, cria uma atmosfera de misticismo, tudo reforçado com a iluminação do poente alentejano.
Por fim lá passo a taberna do Sr. Balocho, nome pelo qual é conhecida a pobre criatura, que para alem de se governar com a insaciável secura das gentes da serra, também é o principal conhecedor das historias e vida social do vale, “tasca da cascata” assim se chama, e não deixando o nome margem para duvidas, que naquele, sitio a pipa nunca seca.
Continuo a perder altitude em direcção ao Porto Espada e encontro me outra vês entre infindáveis vinhedos, com a serra fria e suas imponentes paredes de frente para mim, iluminadas com o resto de sol do fim de tarde, como se de uma dadiva se tratasse, a natureza assim escreveu, sendo este o mais bonito sitio do vale, então será o ultimo a conhecer a noite. Esta magnifica visão transporta me para as verticais e destemidas aventuras do verão.
Entro então no vale de São Julião a deslizar silenciosamente a grande velocidade. São Julião é um povoado constituído por três pequenos aglomerados de nome: Montinho Barrocão e Algoinha, as habitações estendem se ao longo da estrada principal, predominam as tabernas e os cafés, vá se lá saber porquê, quem sabe pêlo calor insuportável dos verões ou pêlo frio cortante do Inverno, ou quem sabe mesmo se por única salvação ao profundo isolamento serrano desta humilde gente de trabalho.
A escola primaria ergue se no alto de uma colina rodeada por um verdejante prado,
Está impecavelmente conservada, como se o tempo ali não tivesse passado, meia dúzia de miúdos da freguesia mantêm na aberta, noutros tempos chegou a ter quarenta alunos e nela leccionou uma professora que deixou memoria lá na terra pela impiedade da sua régua.
Alguns quilómetros e umas subidas depois passo então num sítio chamado tarranganheira, outrora ponto de passagem, onde desembocavam os movimentados trilhos do contrabando.
Estou rodeado por oliveiras e inicio a descida para a Rabaça, pequena povoação que cresceu perto do posto fronteiriço com o mesmo nome. É certamente o povoado mais próximo de Espanha. A descida termina numa ponte sobre um vale verdejante, onde, o ruído das águas invernais do rio Gévora é senhor.
Agora é que começa a parte mais divertida, trata-se de subir a encosta sul da serra, são quinhentos metros de desnível e cerca de uma hora de penitência.
Os pés já há muito deixei de os sentir, pode ser que isto me prepare para alguma aventura mais alpina do próximo ano, tenho as pernas a latejar, as costas e o rabo a doer, a respiração ofegante, que estranha forma de auto-flagelação, que estranha forma de me sentir vivo. Mais ou menos a meio da encosta posso ver o recorte perfeito da serra, sobre a faixa laranja do crepúsculo, á direita a penha amarela e os seu líquenes verdes claro, mantêm sempre presente a escalada. A subida parece não acabar, mas as minhas pernas mantêm a cadencia circular de uma forma quase incontrolável, demente mesmo, como se não houvesse amanhã e aquela fosse a minha última tarefa
O céu acaba por se preencher de cintilantes estrelas, trazendo consigo um fugaz mas generoso quarto crescente que impõem uma cor prateada á estrada que se delineia vale a cima.
Fiquei sozinho mergulhado na escuridão e no silêncio, entregue á exígua luz que trago no guiador, empenhado nos pedais, numa espécie de meditação transcendental, sinto um imenso prazer, um misto de dor e paz de espírito.
O afrutado aroma da silagem e a luz dos candeeiros já acesos, fazem me adivinhar a chegada a Soverete, ataco então a ultima subida até á Teixinha, ao atingir o porto uma enorme placa de granito anuncia o limite da freguesia de alegrete.
Já sinto o cheiro do fumo da minha lareira e a confortável melodia do fogo crepitante.
Posso agora entregar-me a um valente prato de massa salteada com azeite caseiro, alhos pisados e coentros, roubados na horta da minha mãe, acompanho com um vinho tinto do meu vizinho Barreto, mas não é um vinho desses da moda, criados por enólogos de sotaque francês, conseguidos em adegas ultra modernas, é um vinho feito como desde os tempos do deus Baco, como este ensinou os homens a fazer, uns anos bom, noutros menos bom, mas com um aroma e sabor como já poucos conhecem.

terça-feira, novembro 28, 2006

João e Maria


Agora eu era o herói

E o meu cavalo só falava inglês

A noiva do cowboy era você além das outras três

Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões

Guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei,Era o bedel e era também juiz

E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz

E você era a princesa que eu fiz coroar

E era tão linda de se admirar

Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não

Finja que agora eu era o seu brinquedo

Eu era o seu pião, o seu bicho preferido

Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo

No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim

Pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim

Pois você sumiu no mundo sem me avisar

E agora eu era um louco a perguntar

O que é que a vida vai fazer de mim?

Chico Buarque

quinta-feira, novembro 23, 2006

running 4 fun


O sol espreita pelos intervalos das nuvens, altas, carregadas de um negro assustador que prevê a eminência de uma trovoada, os raios de luz iluminam os verdejantes campos de ambos os lados da bucólica estrada, onde alguns centenários castanheiros, anunciam o Outono num véu de folhas que se estende aos seus pés, entre os sons do campo, apenas se ouve o trotear dos meus ténis no asfalto e o arfar do meu fiel amigo bismarck, o qual eu nunca convidei para me acompanhar, mas que tal como eu goza o prazer de correr na montanha.No final da recta, tomo um caminha à direita pelo meio daquilo que outrora foi um frondoso pinhal, com o chão revestido de fetos, agora já em passada mais curta pois o desnível a isso obriga, vou rasgando o caminho e saltitando os pinheiros queimados, que a fúria do vento acabou por prostar,o desnível continua acentuar, fazendo as primeiras gotas de suor brotar na minha face, ao sair dos pinheiros contorno um cotovelo que me leva a uma ultima rampa e que me coloca na aresta cimeira da serra ,o coração parece querer explodir sinto o latejar jugular que teima em levar o oxigénio ás minhas pernas, no final da rampa posso vislumbrar toda a aresta que terei ainda de percorrer ,o serpentear do caminho ladeado por pinheiros, serras verdejantes de ambos os lados e uma ou outra habitação aqui ou acolá, do lado esquerdo a serra recorta-se a contra luz ,fazendo antever, o final do dia a aproximar-se, o horizonte preenche se do inigualável laranja do poente nortealentejano ,são cerca de 50 minutos de êxtase total ,onde cada lufada de ar sabe, como se aquele fosse o ultimo oxigénio puro da terra, os olhos lacrimejantes castigados pelo vento de nordeste arrefecido no maciço central, vão procurando o trilho que já mal se vê ,sempre a ganhar cota até culminar num pinhal sobrevivente aos incêndios ,mergulho no escuro sentindo os voos rasantes de um ou outro morcego e ouvindo as corujas ,sábias guardiãs da noite serrana, uma longa descida volta a colocar me no asfalto onde os candeeiros dão sinais de alguma civilização, no alto da ultima colina já consigo ver a luzes da minha casa, essa imagem que eu tanto gosto de apreciar, reconfortante é o regresso, tendo o mesmo sempre sabor de primeirisso.Assim o faço, não por uma questão estética ,tão pouco por a procura de um resultado ou de ummelhor tempo, sem relógio ,sem clube ,sem compromisso apenas por prazer.